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Como a preservação dos monumentos é fundamental para a nossa Cultura

Por Sérgio Martins

Em Declínio e Queda do Império Romano, o historiador inglês Edward Gibbon (1737-1794) descreve, com detalhes impressionantes, a tomada de Constantinopla pelos otomanos. Último símbolo do poderio romano sobre o mundo, a cidade que hoje é conhecida pelo nome de Istambul sucumbiu ao arsenal bélico do inimigo depois de ser bombardeada por quase um mês – no qual as muralhas, que não foram construídas para suportar a força dos canhões, se renderam ao poder dos invasores. Contudo, o comportamento do monarca vencedor surpreendeu quem estava acostumado às tradicionais pilhagens dos povos subjugados. O sultão Maomé II proibiu que a capital do império romano do oriente, bem como seus monumentos históricos, fosse pilhada e destruída pelos seus soldados. Há quem conteste a veracidade dessa história, mas ela contrasta de modo exemplar com a choldra do dia 08 de janeiro no Distrito Federal, quando um bando de malfeitores invadiu as instalações das principais instituições do país, destruindo prédios e obras de arte. Um ato de “patriotismo” (sim, com aspas porque eles clamam que o fizeram por amor à Pátria) que renderá um prejuízo vultoso nos cofres públicos.

O IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) divulgou a lista das atrocidades cometidas contra as principais instituições do país. Edifícios como o Palácio do Planalto, Palácio do Supremo Tribunal Federal, Palácio do Congresso Nacional, a Câmara dos Deputados, o Senado Federal, a Praça dos Três Poderes, o Museu da Cidade e o Espaço Lúcio Costa sofreram danos que foram da depredação sem dó (inclusive a utilização de certos locais como vaso sanitário) a carpetes e estofados rasgados. Até as cadeiras usadas pelos ministros do STF – e que foram despejadas nas ruas da cidade – trazem uma assinatura nobre: existe uma divergência se elas foram desenhadas pelo arquiteto polonês Jorge Zalszupin ou pelo americano Vincent Cafiero, mas ninguém contesta a sua importância. Os estragos do patrimônio artístico foram maiores. No Palácio do Planalto, o quadro As Mulatas, de Di Cavalcanti, sofreu perfurações por arremessos de pedras portuguesas que compunham a decoração do edifício (maldade semelhante à praticada pelos soldados de Napoleão Bonaparte, que usaram o quadro A Última Ceia, de Leonardo da Vinci, como alvo para uma competição na qual tijolos substituíram os projéteis); O flautista, escultura em bronze de Bruno Giorgi, foi totalmente espatifada, e uma escultura em madeira de Frans Krajcberg teve sua estrutura rompida em quatro pontos, sendo que em um deles houve completa separação do suporte. Pior destino teve o Relógio, de Balthazar Martinot, um dos mais importantes relojoeiros de todos os tempos. A peça, que chegou ao país no século XIX com Dom João VI, é de valor inestimável: mas está completamente partida e depende de peças raras para funcionar novamente. Mais exemplos de destruição foram observados nos outros edifícios, principalmente nos painéis criados por Athos Bulcão (1918-2008) e nos vitrais da artista plástica franco brasileira Marianne Peretti (1927-2022). Isso, claro, sem falar na própria Brasília, um monumento a céu aberto, criação de Oscar Niemeyer (1902-2012) e Lucio Costa (1902-1998).

©PALÁCIO DO PLANALTO/©NIEMEYER,OSCAR/AUTVIS, BRASIL, 2023/FOTO: MICHEL MOCH

 

“Brasília foi a primeira cidade moderna a ser considerada patrimônio da humanidade. Seus edifícios são usados no exterior para mostrar o talento brasileiro”, diz Ricardo Niemeyer, diretor da Fundação Niemeyer. “Oscar fez uma arquitetura inovadora, surpreendente, tipicamente brasileira”, completa. Elisabeth di Cavalcanti Veiga, filha de Di Cavalcanti, cuja As Mulatas foi danificada de maneira bárbara, presenciou o exato momento em que a obra estava sendo atacada. “Meu marido estava assistindo televisão quando escutei um barulho muito grande. De curiosidade saí do escritório e vi que o que estava acontecendo. Tinha acabado de golpear o painel do meu pai”, comenta. “Fiquei impactada com o vandalismo impetrado no Palácio do Planalto.”  As Mulatas é um óleo sobre tela de 120 x 343 cm feito sob encomenda para a Companhia de Navegação Costeira para ser utilizado como peça de decoração da sala de jantar do navio Princesa Leopoldina. Uma curiosidade é que Cavalcanti nunca deu nome às suas obras. Elas eram intituladas por colecionadores para facilitar a identificação da obra. Ela foi chamada inicialmente de Mulheres na Varanda até receber o nome de As Mulatas. Elisabeth acha que não haverá maiores empecilhos para a recuperação do quadro. “A integralidade da obra será como o quê preservada (a integralidade foi rompida mas a obra poderá ser restaurada por profissionais competentes da área do IPHAN e IBRAM)”, diz. Niemeyer, por seu turno, se colocou à disposição do governo federal para auxiliar nas obras de reconstrução. A Autvis, que representa os direitos de Di Cavalcanti, Oscar Niemeyer e Victor Brecheret (que também teve monumentos danificados durante a invasão) soltou uma nota de repúdio aos acontecimentos do dia 08.

©DI CAVALCANTI, EMILIANO/©AS MULATAS, 1962/AUTVIS, BRASIL, 2023/FOTO: ROGÉRIO MELO/G1.GLOBO.COM

 

O crime cometido em Brasília (não, não foi de modo algum uma “manifestação”) não pode de modo algum ser encarado como um protesto político. Não se trata mais de “candidato L contra o candidato B”, mas sim um embate entre civilização contra barbárie. Porque a maneira com que as obras de arte são tratadas falam muito sobre o desenvolvimento de um país. “Os eventos de domingo mostram um desapreço profundo sobre a própria ideia de ter um país. Qual é o projeto de país que pessoas que destroem obras de arte estão propondo?”, questiona o curador Marcello Dantas, que ainda abre espaço para uma ironia. “Falam em gado, mas nem gado faz isso. As vaquinhas são bichinhos legais”, brinca. A historiadora Lilia Schwarcz traça um paralelo entre os terroristas de 8 de janeiro com os admiradores de governantes totalitários. “Toda vez que os governos fascistas, nazistas e autoritários tomam o poder, as artes sempre sofrem. Vamos lembrar do que aconteceu no nazismo, quando se criou o salão da arte degenerada e os nossos heróis e heroínas da arte foram consideradas arte degenerada”, diz ela, lembrando do desprezo de Adolf Hitler pela pintura moderna. No caso do Brasil, o atentado mostra um desprezo por qualquer projeto de nação civilizada. “Apedrejaram o quadro de Di Cavalcanti. O que passa pela cabeça desses terroristas, desses vândalos quando destroem uma obra que fala da nossa brasilidade?”, questiona. “Nesse sentido não tem lado, não tem ideologia, mas traz a sua própria verdade. São atos fascistas, de pessoas que não têm respeito pela arte e pela potência que a arte carrega.” 570 anos depois dos eventos de Constantinopla (a capital caiu no dia 29 de maio de 1453, acontecimento que foi usado como marco do fim da Idade Média e início da Idade Moderna), uma horda de desocupados mostrou que não aprendeu as lições de Maomé II.

 

Autor: Sérgio Martins/Comunicação Autvis

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